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Sem mais,
Julia Campanucci

domingo, 30 de setembro de 2007

Pão com Doce



Pão com doce


Sabe mãe, eu não quero ser grande. Quero olhar para as estrelas e pensar sempre que elas tocam no céu, quero imaginar que vivem anjos nas nuvens e que Deus faz lá em cima grandes patuscadas com o seu filho Jesus e outros amigos, que não há horas nem minutos, só dia quando começa a luz e noite quando as estrelas iluminam a cidade, lá ao fundo da janela, feita de mil luzinhas amarelas e brancas.
Sabe mãe, eu não quero crescer. Quero continuar a achar que a casa é tão grande que posso fazer corridas de triciclo até ficar com a língua de fora, quero puxar sempre um banco para ir buscar o iogurte escondido na prateleira do frigorífico, fazer equilibrismo cada vez que tenho de sair da banheira e pensar que o mundo está cheio de pais, mães, avós, tias e primas todas lindas, com a pele lisa e bem cheirosa que passam o tempo a dar-me beijinhos e presentes.

Eu sei que estou a crescer, os sapatos deixam de me servir de um mês para o outro, as calças roçam-me os calcanhares e as mangas das camisolas encurtam, caem-me dentes todas as semanas e já me disseram lá na escola que agora é que vou ter dentes a sério como as pessoas crescidas, mas eu não acredito, quero os meus dentes de volta para poder mastigar o bife e o pão com doce. Também me dizem que daqui a um ano e picos me vou sentar numa carteira, vou ter livros e cadernos, vou aprender a ler e a fazer contas, não me importo nada, até acho boa ideia. O pior é que depois vou ter trabalhos de casa e quando acaba a escola eu quero é ir para o escorrega, encher a cara de areia, andar de baloiço até quase dar a volta perto do céu e esconder-me atrás dos troncos das árvores, muito direitinho sem ninguém me ver e quando a mãe chega e se põe à minha procura eu transformo-me no Homem Invisível e depois apareço de repente e voltamos os dois para casa.

A mãe liga a música e cantamos em coro a história daquela sereia que queria ser menina, da baby-sitter que voava pendurada num guarda-chuva, do rapaz pobre que encontrou uma lamparina e descobriu que o melhor amigo dele era um génio, da menina que derreteu o coração de um monstro e fez dele um homem. Ponho o cinto, não vá aparecer um senhor de bigode vestido de azul com um boné a dizer polícia que mande parar o carro e passe um papel branco com letras e números que deixam a mãe mesmo chateada.
No caminho de regresso há muitos risquinhos brancos na auto-estrada e muitos candeeiros ao pé do céu, tantos que a certa altura desisto de os contar e quando está calor posso abrir a janela e sentir o vento na cara a empurrar-me o cabelo para trás da cabeça e então fecho os olhos até metade e sonho com um hambúrguer gigante cheio de surpresas e uma bebida com bolhinhas para o jantar.
Quando crescer, tenho medo de andar sempre cansado, de já não gostar de ver o mesmo filme três vezes seguidas, de não me divertir a jogar o dominó nem a brincar às escondidas dentro dos roupeiros onde cheira a sabonete e as camisolas fazem uma espécie de almofada muito fofinha onde me sento em silêncio à espera que me descubram.
Sei que ainda faltam muitos anos para que essas coisas todas horríveis me aconteçam, que antes de me tornar um homem ainda vou mudar de voz, a cara vai semear-se de pêlos estúpidos, os meus pés vão ficar do tamanho dos de um gigante e nem vou perceber o que me está a acontecer.
Mas enquanto esse dia não chega, só me apetece brincar, dar beijinhos às pessoas de quem gosto, adormecer com a cara encostada à mão da minha mãe e pensar que ela é a mais linda e a mais querida e que vai estar sempre à minha cabeceira, quando à noite fecho os olhos e imagino que dou a volta ao mundo numa largada de balões de todas as cores...
Crónicas da Margarida de Margarida Rebelo Pinto


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